Em todo o país, universitários reclamam de prejuízos causados pela liberdade de as faculdades modificarem, a qualquer tempo, o conteúdo de seus cursos. Estudantes, especialistas e entidades ouvidas pela Agência Brasil dizem que os mais afetados por súbitas mudanças pedagógicas são os alunos de instituições particulares que, em muitos casos, veem o sonho da formatura adiado e têm que arcar com custos inesperados.
Alex Chernehaque diz que a mudança curricular prejudicou outros alunos. – reprodução/Facebook
As queixas aumentaram com a pandemia da covid-19, que forçou todo o ensino a se ajustar às restrições às aulas presenciais, mas não são recentes. Basta pesquisar na internet para encontrar dezenas de reclamações e pedidos de orientação jurídica sobre reflexos das mudanças de matriz curricular. Em sites como o Reclame Aqui, internautas se queixam de terem que cursar novas disciplinas; da redução de carga horária ou da extinção de matérias. Os estudantes atribuem esses problemas à autonomia das instituições que implementam mudanças que acabam afetando quem já está estudando.
Esta semana, no Distrito Federal, discentes de psicologia de uma das faculdades que recentemente reformularam seus currículos organizaram um abaixo-assinado por temerem perda de qualidade do ensino. Em Florianópolis, uma universidade alterou não só os currículos de vários de seus cursos no fim do primeiro semestre de 2020, como anunciou que disciplinas, antes presenciais, passarão a ser virtuais, mesmo após a pandemia. Um problema para o estudante Alex Chernehaque que foi obrigado a trancar o curso que fazia, de julho a dezembro de 2020, por mudanças, sem prévio aviso, em práticas comuns na universidade.
“Até então, podíamos escolher as matérias que quiséssemos, independentemente do semestre, desde que não tivessem pré-requisitos. Cada aluno podia montar sua grade levando em conta as disciplinas obrigatórias que devia cursar para se formar”, comentou Chernehaque, explicando que, antes de se matricular em psicologia, já estudava direito na mesma instituição.
“Por dois anos, fui fazendo matérias de diferentes períodos do curso de psicologia. Até que, com a mudança da matriz curricular e as novas normas, a faculdade me informou que eu teria que retornar ao primeiro semestre de psicologia, alegando que eu não tinha concluído nenhum semestre”, diz o estudante.
Membro de um diretório acadêmico, Chernehaque garante que a mudança prejudicou outros alunos. Segundo ele, o que a universidade propôs “para minimizar o prejuízo” foi descontar a carga horária das matérias cursadas das horas de atividades complementares que ele precisa fazer durante o curso.
“Ou seja, ou conquisto, na Justiça, o direito de seguir conforme previa a matriz curricular anterior, de quando me matriculei, ou aceito voltar ao início do curso e praticamente perco os dois anos que já estudei”, lamentou o estudante, que recorreu ao Ministério Público, mas não descarta a hipótese de abandonar o curso pela metade.
Em Fortaleza, depois de decidir fazer uma segunda graduação, a jornalista Edwirges de Oliveira também teve que lidar com os efeitos de duas mudanças de matriz curricular implementadas em um curto espaço de tempo. Ao dar à luz a sua filha, em abril de 2018, ela já tinha cursado três semestres do curso de Design de Interiores de uma faculdade particular. Foi quando decidiu trancar a matrícula e se afastar temporariamente dos estudos.
“Quando voltei, no começo de 2019, o currículo tinha sido modificado. Conversei com o coordenador do curso, que me disse que o melhor era eu aderir à nova grade, mais moderna, com novas disciplinas”, contou Edwirges.
Segundo ela, a própria faculdade ajustou o currículo, aproveitando as disciplinas cursadas. “Só depois eu notei que algumas das matérias que eu já tinha cursado separadamente tinham sido unidas em uma só, e que parte do conteúdo eu já tinha estudado. Como algumas coisas eu ainda não tinha visto, preferi seguir o novo currículo”, relembra Edwirges.
No começo de 2020, Edwirges teve que voltar a trancar a matrícula por mais um semestre. Foi quando a faculdade fez uma nova mudança.
“Continuei com minha grade anterior, de 2019, mas tive que me reorganizar para entender o que faltava para me formar. Identifiquei que tinha que cursar uma matéria que não aparecia no sistema. Consultei a coordenação, que me informou que a disciplina tinha sido mesclada à outra, que eu já tinha feito, e que foi automaticamente aproveitada quando do ajuste do meu currículo. Ou seja, no fim, alguns conteúdos eu vi duas vezes. Outros, eu não estudei”, assegura Edwirges, que acabou pagando para fazer outros cursos específicos para suprir a lacuna na formação acadêmica.
Por ter identificado casos em diferentes regiões e entender que o problema não se limita a uma ou outra instituição de ensino, a reportagem optou por não mencionar o nome de nenhuma faculdade.
Abusos
Membro da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e professor universitário, o advogado Lindojon Gerônimo julga que, embora fundamental para manter os cursos ajustados às constantes mudanças do mercado de trabalho, a autonomia das faculdades de modificarem a matriz curricular a qualquer momento tem permitido a prática de abusos.
“Não há nada de errado em, de tempos em tempos, uma faculdade modificar sua matriz curricular para se ajustar às mudanças do mercado. Isto faz parte da autonomia universitária, prevista na LDB”, disse o advogado, se referindo à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Em seu artigo 53, a lei, de 1996, estabelece que as universidades têm autonomia para, entre outras coisas, fixar currículos, bem como para criar, organizar e extinguir cursos e programas, desde que “observadas as diretrizes gerais pertinentes”.
“Infelizmente, algumas instituições abusam desta prática, interpretando a legislação de forma a se favorecerem. No caso de entidades privadas, com as quais o aluno tem uma relação contratual que envolve pagamentos financeiros, a questão não é tão simples, pois é preciso levar em conta também o Código de Defesa do Consumidor e o Direito Civil contratual”, pondera Gerônimo, destacando que o Código, em seu artigo 51, define que são nulas as cláusulas contratuais consideradas abusivas, entre elas, as que gerem ônus excessivo ao consumidor.
O advogado Lindojon Gerônimo julga que há casos de abusos – Eugenio Novaes/CFOAB
“Se não houver acordo entre as partes, caberá à Justiça decidir o que é abusivo”, explica o advogado, citando, como exemplo, casos de trancamento de matrículas. “Se o contrato prevê que o aluno pode trancar a matrícula por um certo período, sem custos, é o caso de se analisar o que a faculdade exige dos estudantes que retornam ao curso. Mesmo que o contrato estabeleça que eles podem ter que cursar uma ou outra nova matéria ao pedir o destrancamento. Porque uma coisa é a instituição incluir uma disciplina que se tornou necessária. Outra é exigir que um aluno que está perto de se formar tenha que se ajustar à grade de quem está ingressando na faculdade. Principalmente se houve uma mudança drástica da matriz curricular após ele ter iniciado o curso”, sustenta o advogado.
Excepcionalidade
Diretor-executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), Solon Caldas diz que casos como os identificados pela reportagem sempre foram “pontuais”. Contudo, reconhece que, com a pandemia da covid-19 e a necessidade das instituições de ensino ajustarem a prestação de serviço às restrições, o problema pode ter se tornado “mais complexo”.
“Em termos gerais, a legislação garante a autonomia didático-pedagógica das universidades e os órgãos competentes as autoriza a fazer as modificações que julgarem necessárias”, disse, lembrando que os contratos de prestação de serviço informam aos alunos ou a seus responsáveis que as faculdades podem modificar o currículo a qualquer momento e que, consequentemente, algum “ajuste” pode ser exigido.
“Os alunos estão cientes de que as instituições têm autonomia pedagógica para fazer as mudanças que a lei permite”, acrescentou Caldas, destacando que os “pontos fora da curva” devem ser tratados caso a caso.
“Não há receita de bolo. O que a Abmes recomenda é que as instituições cumpram tudo o que a lei exige, preservando a qualidade dos cursos. E que, principalmente neste momento atípico, em um contexto em que, possivelmente, todas as instituições de ensino tiveram que fazer alguma adequação, haja bom senso tanto por parte das universidades quanto dos estudantes”, disse o representante da associação, lembrando que, no que diz respeito à adoção de aulas remotas, as instituições vêm seguindo o que prevê a Lei nº 14.040.
Em vigor desde agosto de 2020, a lei estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o tempo que durar a pandemia, entre elas, a possibilidade de os cursos superiores optarem por atividades pedagógicas não presenciais como forma de cumprir a carga horária exigida.
Falhas
Já segundo o presidente da Associação Brasileira de Procons (ProconsBrasil), o advogado Filipe de Araújo Vieira, a controvérsia é um fato. “Cotidianamente, recebemos alunos reclamando de prejuízos decorrentes de alterações naquilo que contrataram. Principalmente de estudantes que estão prestes a concluir o curso e, de repente, são surpreendidos por mudanças que retardarão sua formatura”, declarou Vieira.
“O contrato de prestação de serviço educacional é marcado por dois eixos interdependentes: o pedagógico, discutido no âmbito do MEC, e o contratual, que diz respeito à relação de consumo. Para nós, órgãos de defesa dos consumidores, qualquer alteração em grades curriculares têm que levar em conta os dois eixos, não podendo causar prejuízos aos contratantes”, disse.
O presidente da ProconsBrasil defende que as instituições de ensino respeitem um tempo mínimo para implementar qualquer alteração da matriz curricular. E que, de preferência, as mudanças se apliquem apenas às turmas que estiverem ingressando no curso.
“A nosso ver, a princípio, os estudantes têm direito adquirido à grade curricular em vigor quando ingressaram na faculdade e assinaram o contrato com a instituição de ensino. Entendemos que a grade precisa ser modificada de tempos em tempos, que o conhecimento evolui, que novas tecnologias são desenvolvidas, mas é preciso que o aluno tenha tempo para se preparar. Caso contrário, ele não tem qualquer segurança quanto ao tempo que levará para concluir o curso.”
Já para o presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Iago Montalvão, os conflitos crescentes decorrem do que ele considera “falhas” na regulamentação do ensino superior privado. “A falta de normativas adequadas gera espaço não só para mudanças unilaterais da estrutura curricular, mas também para a ampliação das disciplinas a distância sem qualquer reparação econômica para os alunos”, comentou Montalvão.
“Qualquer mudança curricular precisa ser amplamente debatida com os alunos, algo que, em geral, não acontece. Além disso, o ideal é que qualquer alteração seja aplicada apenas a quem se matricular após ela ter sido aprovada. Do contrário, as instituições farão o que bem entendem, prejudicando a muitos alunos que demorarão mais para se formar”, acrescenta Montalvão.
Normas
A reportagem consultou o Ministério da Educação e o Conselho Nacional da Educação (CNE) sobre o assunto e aguarda retorno.
Responsável por assessorar o ministério no diagnóstico de problemas e deliberar sobre medidas para aperfeiçoar os sistemas de ensino, o conselho emitiu, em 2018, um parecer sobre o tema.
Na ocasião, consultado pelo MEC sobre a necessidade de criação de regras para as mudanças de grade curricular ou de as faculdades concederem aos alunos a opção de escolher entre grade antiga e a nova, o conselho respondeu que as universidades têm autonomia para definir e alterar seus currículos, devendo apenas “informar aos interessados, antes de cada período letivo, os programas e demais componentes curriculares”, “de modo a preservar os interesses dos estudantes e da comunidade universitária”.
No parecer – homologado em julho de 2020, com a publicação no Diário Oficial da União –, o CNE cita ainda o trecho de uma súmula de 1992, a Súmula 03, para lembrar que o antigo Conselho Federal de Educação (CFE) já tinha se posicionado no sentido de que “estudantes não possuem direito adquirido em relação à grade curricular”, não sendo as instituições de ensino obrigadas a manter inalterável, ao longo de todo o curso, a matriz inicialmente proposta”.
Na Súmula 03, entretanto, os antigos conselheiros também alertavam que “o enfoque pedagógico recomenda que não se submeta o processo educativo, que é por natureza contínuo e cumulativo, a transições bruscas ou modificações traumáticas” e que “a implantação de novos currículos, mínimos ou plenos, deve adotar processo gradual que facilite os ajustamentos adequados” – trecho não mencionado no parecer de 2018.
Edição: Lílian Beraldo
Fonte: Conexão amazônica